sábado, 17 de novembro de 2007

Acórdão do S.T.J., de 15/11/2007, processo nº 07B3093:
O caso é este:
No quesito 1º perguntava-se: "Os débitos da conta bancária n.º ..., da titularidade do autor, referidos em C), foram efectuados com autorização do autor, no cumprimento de ordens de subscrição e de resgate daquele?"
O quesito mereceu resposta de provado, constando da respectiva fundamentação que tal resposta teve por base o depoimento de uma testemunha, funcionária do Banco recorrido, gestora de conta do autor recorrente, com quem este contactava pelo telefone, dando-lhe as respectivas ordens de subscrição e/ou resgate de fundos.
Na tese do recorrente, esta resposta é ilegal, porque obtida em contravenção ao regime probatório, pois as ditas ordens de subscrição ou resgate tinham de ser reduzidas a escrito, sendo ainda certo que o próprio contrato de depósito entre ambos celebrado impõe a redução a escrito ou a fixação em suporte fonográfico das ordens transmitidas por telefone.
A questão é a seguinte:
A produção de prova testemunhal era admissível?
A decisão foi neste sentido:
Entre as actividades de intermediação financeira contam-se os serviços de investimento em valores mobiliários (art. 289º/1.a) do CVM), os quais compreendem, além de outros, a recepção e transmissão, e a execução, de ordens por conta de outrem (art. 290º/1.a) e b) do CVM).
As situações em que o intermediário financeiro recebe, transmite e executa as ordens dadas pelos investidores são operações por conta alheia: o intermediário financeiro actua no interesse e por conta dos seus clientes, sendo na esfera jurídica destes que se repercutem as consequências – positivas e negativas – das operações de subscrição ou transacção de valores mobiliários.
Essa actuação do intermediário financeiro pressupõe a existência de um negócio antecedente – designado normalmente como negócio de cobertura – que serve de base à subscrição ou transacção de valores mobiliários, assumindo-se estas operações como negócios de execução da relação de cobertura.
Os negócios de cobertura, que no CVM aparecem designados como contratos de intermediação, têm a sua regulamentação nos arts. 321º e ss. deste diploma, entre eles se contando as ordens, cuja disciplina se contém nos arts. 325º e ss.
Como refere o Prof. MENEZES LEITÃO Cfr. Actividades de intermediação e responsabilidade dos intermediários financeiros, in Direito dos Valores Mobiliários, vol. II, Coimbra Editora 2000, págs. 129 e ss. , no caso das ordens estamos perante um negócio de formação complexa – “a ordem tem só por si uma auto-suficiência em termos jurídicos, que permite a sua caracterização como um negócio jurídico unilateral, em virtude de nele existirem liberdade de celebração e liberdade de estipulação”. Mas, para ser vinculativa para o intermediário, é necessário que exista uma prévia relação de clientela, sem o que este poderá recusá-la (art. 326º/3 do CVM). E essa relação de clientela pode ser instituída contratualmente – maxime, através de um contrato de gestão de carteira ou de registo e depósito de valores mobiliários – e existe, também, quando o intermediário financeiro seja destinatário frequente de ordens dadas pelo investidor, caso em que se considera tacitamente estabelecida. Em qualquer caso, como acentua aquele ilustre Professor, a relação de clientela assume uma função enquadrante e integradora das ordens emitidas, pelo que pode ser considerada como um contrato-quadro – contrato celebrado para regular o conteúdo de futuros negócios, cuja celebração não corresponde, porém, a uma obrigação assumida pelas partes – sendo a sua junção com o negócio unilateral, que é a ordem, que vincula o intermediário financeiro a efectuar a subscrição ou transacção de valores mobiliários, desde que preenchidos os requisitos legais a que a ordem deve obedecer.
De acordo com o art. 325º do CVM, logo que receba uma ordem para a realização de operações sobre valores mobiliários, o intermediário financeiro deverá:
- verificar a legitimidade do ordenador; e
- adoptar as providências que permitam, sem qualquer dúvida, estabelecer o momento da recepção da ordem.
As ordens – estatui o art. 327º/1 do CVM – podem ser dadas oralmente ou por escrito, devendo no primeiro caso ser reduzidas a escrito pelo receptor ou fixadas por este em suporte fonográfico. Este dever de reduzir a escrito a ordem dada verbalmente é um dos deveres acessórios de quem recebe a ordem, inserindo-se entre os deveres de custódia e segurança, ligados ao princípio da confiança, essencial a todo o tráfico mercantil. Cfr. AMADEU JOSÉ FERREIRA, Ordem de Bolsa, ROA ano 52, II, pág. 483.
Em matéria de forma das ordens de bolsa haverá que ter ainda em conta o que consta dos arts. 52º e 53º do Regulamento 12/2000, da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). Além de outras, são atribuições da CMVM, a regulação dos mercados de valores mobiliários, das ofertas públicas relativas a valores mobiliários, das actividades exercidas pelas entidades sujeitas à sua supervisão e de outras matérias previstas no CVM e em legislação complementar (art. 353º/1.b) do CVM), para o que dispões de poderes de regulação, entre eles o de emitir regulamentos, que são publicados na 2ª série do DR, e que devem observar os princípios da legalidade, da necessidade, da clareza e da publicidade (art. 369º/1 e 2), que contém o desenvolvimento das regras relativas às actividades de intermediação financeira.
Dos citados preceitos – o art. 327º/1 do Código e os arts. 52º e 53º do Regulamento – colhe-se que, em sintonia com o princípio da liberdade de forma vazado no art. 219º do CC, não é exigível qualquer forma especial para dar ordens de bolsa, o que bem se entende se tivermos em atenção que a celeridade é um dos valores mais característicos do mercado bolsista.
Todavia, se a ordem for verbal, deve ser sempre reduzida a escrito, recaindo tal obrigação sobre o intermediário financeiro que a recebe.
Este, porém, pode substituir a redução a escrito das ordens pelo mapa de inserção das ofertas no sistema de negociação, desde que fique garantido o registo da hora de recepção, da identificação do ordenador e do número sequencial de recepção da ordem; e, se as ordens forem fixadas em suporte fonográfico, este deve assegurar níveis adequados de inteligibilidade, durabilidade e autenticidade (cits. arts. 52º e 53º). E pode mesmo exigir ao ordenador a confirmação por escrito de ordem que deste haja recebido, podendo recusar-se a aceitá-la se tal confirmação não tiver lugar (art. 326º/2.d) do CVM). Esta disponibilidade da forma da ordem de bolsa por parte do intermediário financeiro liga-se a razões de segurança no funcionamento do próprio mercado e à salvaguarda dos interesses dos próprios intermediários financeiros Cfr. AMADEU JOSÉ FERREIRA, ob. e loc. cits., págs. 491/492. E não tem que ver, parece-nos seguro, com a prova do negócio unilateral em que a ordem se traduz.
O Prof. MENEZES CORDEIRO, num estudo que deu à estampa há já alguns anos “Da transmissão em bolsa de acções depositadas”, na revista O Direito, ano 121º, 1989 – I (Jan. – Mar.), págs. 75 e ss. , reconduzia a três os princípios gerais basilares em matéria de direito das bolsas de valores: celeridade, não-formalismo e confiança.
Depois de ligar a regra da celeridade “às necessidades prementes da circulação mobiliária, a que as bolsas de valores dão corpo”, e de acentuar a relação que o não-formalismo tem com a celeridade – as operações jurídicas formais são lentas, exigem tempo para serem concretizadas, por via das operações acessórias que precedem ou acompanham os actos, e tais delongas seriam contra natura no domínio da circulação dos títulos de crédito – Menezes Cordeiro aponta ainda outra justificação para a prevalência, neste domínio, do princípio do não-formalismo – justificação que radica no “condicionalismo reinante no campo dos títulos de crédito e das operações em bolsa” Estudo e loc. cits., págs. 76/77.
As razões que justificam, tradicionalmente, a exigência de formalidades para a prática de actos jurídicos – proteger as próprias partes contra a sua irreflexão, facilitar a prova, e publicitar os actos – encontram, no tráfego cambiário, tradução e protecção que não passam pela forma.
“A protecção das pessoas – menos intensa já que se trata de um sector específico ao qual só acede quem o quiser fazer – consegue-se pela limitação no acesso: apenas certas entidades podem receber ordens de bolsa. A prova é facilitada pela posse dos títulos. A publicidade, quando necessária, beneficia também desse factor. Portanto: as necessidades de prontidão e de eficácia, por um lado, e a presença de moldes para acautelar os valores prosseguidos, noutras áreas normativas, com recurso às regras formais, por outro, conduzem a um princípio geral de não-formalismo, no tráfego de títulos e, em especial, no que se realize nas bolsas de valores.”
O que visa, então, a exigência de redução a escrito, pelo intermediário financeiro, das ordens de bolsa recebidas do ordenador?
Já deixámos dito que não é para prova de que a ordem foi dada que tal exigência consta da lei.
Se em causa estivesse essa prova, não se justificaria que a formalização da ordem fosse relegada para momento ulterior à sua emissão verbal; tão pouco se compreenderia a faculdade, conferida ao intermediário financeiro, de substituir a redução a escrito das ordens pelo mapa de inserção das ofertas no sistema de negociação, garantindo apenas o registo da hora de recepção, a identificação do ordenador e o número sequencial de recepção da ordem; e menos ainda que a operação de formalização fosse cometida unilateralmente ao receptor, sem qualquer controlo do emissor.
Ademais, para que se pudesse afirmar que era aquele o objectivo visado, importaria que tal resultasse claramente da lei: que, tal como o impõe o n.º 2 do art. 364º do CC, resultasse claramente da lei que a finalidade tida em vista com a exigência formal – redução a escrito das ordens de bolsa dadas verbalmente – é apenas a de obter prova segura da sua emissão. E certo é que a lei (o art. 327º ou outro, do CVM) silencia em absoluto a tal respeito.
Qual é, então, a finalidade da exigência da redução a escrito ou da fixação em suporte fonográfico?
Já acima ficou qualificado o respectivo dever do intermediário financeiro como um dos deveres acessórios a que se acha vinculado quem recebe a ordem, inserido entre os deveres de custódia e segurança, ligados ao princípio da confiança, essencial a todo o tráfico mercantil.
Na verdade, a lei (arts. 304 e ss. do CVM) exige que os intermediários financeiros assegurem, no exercício da sua actividade, “elevados níveis de aptidão profissional”, protegendo não só os legítimos interesses dos seus clientes como também a eficiência do mercado, e impõe-lhes um alargado leque de deveres, entre eles deveres acessórios de boa fé nas relações com todos os intervenientes do mercado, concretizados na exigência de elevados padrões de diligência, lealdade e transparência (art. 304º/2 do CVM).
A sua contabilidade deve reflectir diariamente, em relação a cada cliente, o saldo credor ou devedor em dinheiro e em valores mobiliários, e manter um registo diário das operações que realiza, por conta própria e por conta de cada um dos clientes; é-lhe vedado, v.g., desenvolver actividade de intermediação excessiva, realizando por conta dos clientes ou incitando-os a efectuar operações repetidas, que tenham por fim objectivos estranhos aos interesses destes; deve evitar ou reduzir ao mínimo o risco de conflito de interesses e, quando este ocorre, deve agir por forma a assegurar aos seus clientes um tratamento transparente e equitativo; deve entregar aos clientes os valores mobiliários adquiridos e o preço dos alienados; deve, através da adequada informação (aos clientes e à CMVM) e publicidade, assegurar a confiança dos investidores e a transparência do mercado; deve abster-se de participar em operações susceptíveis de pôr em risco a regularidade de funcionamento, a transparência e a credibilidade do mercado, designadamente em operações imputadas a uma mesma carteira, tanto na compra como na venda, em operações que envolvam a transferência aparente, simulada ou artificial de valores mobiliários entre diferentes carteiras, ou na execução de ordens destinadas a defraudar ou a limitar significativamente os efeitos de leilão, rateio ou outra forma de atribuição de valores mobiliários, etc. Tudo isto se liga aos aludidos princípios da transparência e da confiança e justifica a obrigação de registo, escrito ou sonoro, das ordens de bolsa.
Registo que tem também uma função de salvaguarda dos próprios interesses do intermediário e da sua responsabilidade civil perante o cliente – casos há em que o intermediário deve recusar uma ordem; e outros em que pode fazê-lo (art. 326º/1 e 2 do CVM), devendo, num e noutro caso, comunicá-lo, de imediato, ao ordenador – e perante terceiros, pelo menos, perante aqueles que realizaram a operação inversa. Entendemos, pois, acertada a asserção – expressa no Ac. Rel. Lisboa, de 06.11.2001 Col. Jur. ano XXVI, tomo v, pág. 76. – de que a exigência do registo, escrito ou fonográfico, visa o registo das ordens para confronto, se for caso disso, com os termos da sua execução, para protecção dos interesses, não só do ordenador como de terceiros, e garantir a transparência e correcto funcionamento do mercado. Não se trata de formalidade ad probationem da emissão da ordem, sendo ilegítima, como também decorre do aresto citado, a invocação do disposto no art. 393º/1 do CC para pôr em causa a resposta ao quesito 1º da presente acção. A ordem verbal pode ser provada por quaisquer meios probatórios legalmente admissíveis, incluindo, claro, por testemunhas.
Ainda nesta área, e sem prejuízo do que vem de ser referido, não pode passar sem análise um outro aspecto da questão.
Está inequivocamente provado que os múltiplos lançamentos efectuados, a débito e a crédito, na conta do autor, tiveram lugar entre 26.11.2001 e 27.09.2002; que o banco réu remeteu ao autor os documentos (borderaux) comprovativos desses lançamentos, com indicação do nome do fundo de investimento a que se destinaram as aplicações (foi o próprio autor que os juntou com a sua p.i.); que lhe enviou igualmente, ao longo desse período, extractos bancários contendo informação discriminada respeitante à conta de depósitos do autor; e que este manteve controlo e conhecimento dos movimentos efectuados na sua conta, através de meios telefónicos e da Internet. Tudo isto revela que o recorrente sempre esteve a par das subscrições e resgates de títulos efectuados pelo recorrido, quer pelos documentos directamente respeitantes a essas operações (borderaux), quer pelos extractos bancários da sua conta de depósitos, que periodicamente recebia, e que inseriam os lançamentos correspondentes a tais operações, quer, finalmente, pelo escrutínio a que, via telefone e Internet, foi sujeitando essa mesma conta. Mal se perceberia, pois, que, a não ser tudo isto mera decorrência de ordens do recorrente, este se tivesse mantido mudo e quedo, impávido perante aquilo que seria uma actuação abusiva do recorrido. É que, sobretudo em relação aos borderaux, não é aceitável a afirmação do recorrente de que eles “são comprovativos de movimentos, não são registos de ordens”. Na verdade, eles são mais do que meros comprovativos de movimentos, pois que contêm – quer nos casos de subscrição (a que respeitam os lançamentos a débito), quer nos de resgate (lançamentos a crédito) de Fundos de Investimento – a menção do nome do fundo de investimento, da data da operação, do n.º UP´s/Acções, do valor UP/Acções e do montante total da operação, bem como a seguinte referência (conforme o caso):“Subscrição de Fundos de Investimento por débito na conta de depósitos à ordem de V.ª Ex.ª, conforme instruções recebidas nesta data”; ou “Resgate de Fundos de Investimento por crédito na conta de depósitos à ordem de V.ª Ex.ª, conforme instruções recebidas nesta data”. Compreende-se, por isso, o raciocínio da Relação quando afirma que, a entender-se que as ordens de bolsa só podem provar-se por escrito, e uma vez que o art. 327º/1 do CVM “apenas impõe que a instituição bancária reduza a escrito a ordem recepcionada”, os ditos borderaux constituiriam prova plena das declarações emitidas pelo próprio recorrente – e que, em tal contexto, a acção traduziria um venire contra factum proprium. Estaria, na verdade, vazada em cada um desses documentos escritos, a indicação de que, no dia em cada um deles indicado, o recorrente dera instruções para a subscrição ou resgate de um certo número de UP´s/Acções de um igualmente indicado Fundo de Investimento. Não seria isto a redução a escrito a que alude o apontado normativo? Que mais seria preciso para se haver por satisfeita a exigência legal? Afinal, é o próprio parecer junto pelo recorrente que refere que “(e)ste registo serve para prova da realização da operação, destina-se a permitir que o investidor saiba que uma ordem por si regularmente emitida foi efectivamente executada. Quer porque o intermediário financeiro a introduziu no sistema, quer porque foi possível subscrever ou resgatar as unidades de participação nos termos indicados pelo investidor final” (é nosso o sublinhado). Seja como for, o certo é que se trata de documentos que, no contexto da acção – juntos que foram pelo próprio autor recorrente – traduzem, pela sua aceitação sem reacção, quando lhe foram remetidos pelo Banco, o reconhecimento de factos desfavoráveis, que, não valendo, seguramente, como confissão, valem, todavia, como elemento probatório de livre apreciação pelo tribunal (cfr. art. 361º do CC).
Normas essenciais convocadas:
- artigo 326º/1 e /2/d) do CVM;
- artigo 327º/1 do CVM;
- artigos 52º e 53º do Regulamento 12/2000, da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM);
- artigo 219º do Código Civil;
- artigo 361º do Código Civil.
- artigo 364º/2 do Código Civil.
Doutrina citada:
- Menezes Leitão, Actividades de intermediação e responsabilidade dos intermediários financeiros, in Direito dos Valores Mobiliários, vol. II, Coimbra Editora 2000, págs. 129 e ss;
- Amadeu José Ferreira, Ordem de Bolsa, in ROA, ano 52, II, pág. 483.
- Menezes Cordeiro, Da transmissão em bolsa de acções depositadas, in revista O Direito, ano 121º, 1989 – I (Jan. – Mar.), págs. 75 e ss.

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